Uma Lisboa que não dorme

Todas as noites, várias equipas técnicas de rua, de diferentes instituições de solidariedade, calcorreiam as ruas da cidade à procura de pessoas em situação de sem-abrigo. Estendem-lhes a mão, conversam com elas, tentam ajudá-las a encontrar um novo caminho.

Acompanhámos a equipa da Comunidade Vida e Paz, que nem com o aparecimento da pandemia parou de trabalhar. Bem pelo contrário. As necessidades estão ainda mais acentuadas. 
 

Joana Viana, 28 anos, é técnica superior de serviço social da Comunidade Vida e Paz. Há cerca de 3 anos que integra a equipa que palmilha cada rua, cada esquina, cada canto da cidade, e vai ao encontro de pessoas em situação de sem-abrigo, abordando-as. Umas pedem ajuda, outras preferem ficar sós. “Tentamos perceber a situação em que se encontram, o porquê de estarem aqui e tentamos analisar quais são as possibilidades de resposta, de encaminhamento, à medida de cada um”.

A maioria dos casos, revela, são pessoas que estão em situação de sem-abrigo há muitos anos, o que dificulta um rápido estabelecimento de laços de confiança. Situações que exigem que as equipas percebam melhor porque é que as pessoas estão na rua, dando-lhes o apoio psicossocial, um acompanhamento de forma rotinada e indo ao encontro daquilo que verdadeiramente necessitam. 
 

Em Lisboa existem mais de 50 respostas no terreno, com o envolvimento de 21 parceiros, integradas no Plano Municipal para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, que tem um horizonte temporal até 2023. Este plano pretende dar resposta a cinco grandes eixos de intervenção: sinalização, emergência, transição, inserção e prevenção.

“Estamos a falar de respostas de alojamento como o housing first; respostas de equipas técnicas de rua, que são aquelas equipas que estão todos os dias no terreno com as pessoas que estão em situação sem-teto, respostas ao nível da empregabilidade, como o projeto ´É um restaurante´ ou ´Emprego Primeiro Porta Aberta´, que começou muito recentemente; e mais um exemplo, os NAL- Núcleos de Apoio Local. São espaços onde as pessoas, em vez de comerem na rua, podem tomar a sua refeição condignamente, sentadas à mesa e é o momento em que se consegue trabalhar as pessoas de outra forma. São muitas respostas transversais. A câmara tem feito, nos últimos anos, um investimento muito forte nesta área”, explica Paulo Santos, coordenador da equipa de projeto do Plano Municipal para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2019-2023 (EPPMPSSA).

Há três semanas, acompanhámos um jovem que tinha chegado à rua há alguns dias e que demorou cerca de três semanas a ser colocado num albergue. É muito compensador ver que uma pessoa que há dois anos estava na Universidade em Beja, a estudar Agronomia e que chegou à rua, conseguiu sair. Nós continuamos a acompanhá-lo, para garantir que não seja só tirá-lo da rua e consiga ter um futuro à sua frente, que o dignifique e lhe traga felicidade”. 

Alfredo Martins, Comunidade Vida e Paz
 

Equipas Técnicas de Rua

Atualmente existem cinco equipas técnicas de rua, distribuídas por quatro grandes áreas da cidade de Lisboa, e que são responsáveis pelo apoio psicossocial e médico. São todas parceiras e financiadas pela Câmara Municipal de Lisboa: CRESCER – Associação de Intervenção Comunitária; Comunidade Vida e Paz; AVA - Associação Vida Autónoma; VITAE – Associação de solidariedade e Desenvolvimento Internacional e a Associação Médicos do Mundo, que oferece uma cobertura territorial de toda a cidade em termos de cuidados básicos de saúde das pessoas.

Os números oficiais (dados de 2019) revelam que em Lisboa, antes da pandemia Covid-19, cerca de 2 mil pessoas estavam em situação de sem casa e 400 pessoas sem-teto.

Housing First | Casa Primeiro

É um projeto criado há cerca de oito anos, em que as pessoas são integradas em habitações, na sua maioria individuais, e são acompanhadas por técnicos que os ensinam a gerir uma casa, tendo em vista a sua integração social. “A pessoa primeiro tem acesso à casa e é acompanhada todas as semanas por uma equipa com competências para isso, que vai ganhar a confiança e depois trabalhar as outras áreas. É uma resposta que tem tido muito sucesso para aquelas pessoas que estão 10, 15, ou mais anos na rua, que nunca aceitaram nenhuma resposta tipificada e têm estado a aderir àquilo que é o modelo Housing First”, esclarece Paulo Santos. “Vou dar um exemplo prático. A equipa da Comunidade Vida e Paz, que estamos a acompanhar, se está com alguém na rua e identifica que esta pessoa muito provavelmente se enquadraria na resposta Housing First, faz a sinalização a uma outra equipa que gere esse programa. Essa equipa agenda uma entrevista com essa pessoa, faz a sua avaliação e depois é integrada dentro projeto”, explica. 

 


No primeiro ano de plano municipal, o investimento autárquico foi superior a 4 milhões de euros, sendo grande parte associado às respostas de alojamento, como por exemplo, o Housing First.


Neste momento existem 340 casas em Lisboa integradas no plano municipal de apoio às pessoas em situação de sem-abrigo. O programa Housing First foi lançado com 80 vagas, em abril de 2020 foram lançadas 100 vagas, que coincidiu com o início da pandemia, e em setembro foram criadas 160 vagas adicionais. 

Quatro destas entidades são financiadas pela Câmara de Lisboa, responsável pelo projeto Housing First: AEIPS - Associação para o Estudo e Integração Psicossocial; CRESCER - Associação de Intervenção Comunitária; GAT - Grupo de Ativistas em Tratamentos e VITAE – Associação de Solidariedade e Desenvolvimento Internacional.
 

Com a pandemia surgiram novas necessidades, com urgência acrescida. Exemplos de resposta são a criação de quatro Centros de Acolhimento de Emergência, e o reforço da distribuição alimentar em vários polos da cidade.

Distribuição Alimentar

A coordenação da distribuição alimentar na cidade é da responsabilidade do NPISA - Núcleo de Planeamento de Intervenção para a Pessoa em Situação de Sem-Abrigo. É constituída por cerca de 30 entidades parceiras, que vão dando a resposta de uma forma concertada e “depois surgem outras entidades, totalmente meritórias de virem à cidade e trazerem o seu contributo, mas que não fazem parte da rede”, adianta Paulo Santos, acrescentando que o trabalho do NPISA “envolve muita gente e é muito complexo. Às vezes não se sabe quando é que a distribuição vai acontecer e envolve muita articulação entre parceiros para garantir uma resposta eficaz e alimentação para quem efetivamente precisa.”

O NPISA é uma resposta da rede social de Lisboa, que surgiu em 2015 e é constituída por uma comissão tripartida: Câmara Municipal de Lisboa, Santa Casa de Misericórdia e Instituto da Segurança Social. O objetivo do NPISA é monitorizar o fenómeno, fazer a articulação e potenciar os recursos que cada uma destas instituições pode trazer para a cidade naquilo que é resposta à área dos sem-abrigo.

Centros de Ocupação e Inserção Diurna

São os espaços que durante o dia estão disponíveis para as pessoas que estão em situação de sem-abrigo. O coordenador da equipa PPMPSSA, Paulo Santo, esclarece que os centros de emergência oferecem dormida, mas que durante o dia não é permitido a pessoa permanecer no local e por essa razão foram criados estes centros. “São locais onde as pessoas podem ocupar o seu dia com várias atividades como sessões de cinema, de televisão, debates, contos ou se quiserem podem simplesmente estar sentadas no sofá a conversar, a tomar o pequeno-almoço tranquilamente ou ter acompanhamento para procurar um emprego.

São espaços de grande potencial, porque em vez das pessoas estarem na rua podem usufruir deste local criando rotinas e laços de sociabilização.”
Neste momento, financiados pela Câmara Municipal de Lisboa, existem cinco espaços que permitem o acolhimento e acompanhamento durante o dia: Ateliers de Mudança (Serve The City), COID Exército de Salvação (Centro Social do Exército de Salvação), Espaço Aberto ao Diálogo (Comunidade Vida e Paz), Espaço Âncora (Crescer na Maior), Projeto Orientar (ORIENTAR – Associação de Intervenção para a Mudança.) 

Centros de emergência

Face à atual emergência, a autarquia teve de criar soluções específicas, adaptadas ao contexto de pandemia Covid-19. Em março de 2020, Lisboa abriu quatro centros de acolhimento de emergência para as pessoas em situação de sem-abrigo. Até agora, passaram quase 800 pessoas por estes centros de acolhimento, muitas das quais foram encaminhadas para soluções de alojamento permanente, que recebem em simultâneo até 220 pessoas. São centenas de pessoas que saíram da rua, ou evitaram cair na rua, depois de terem perdido os seus rendimentos.
“A experiência que tínhamos eram os centros que davam resposta às vagas de frio, mas que duram três ou quatro dias. Aqui o contexto é diferente. Criaram-se centros municipais de emergência, ou seja, que estão ativos enquanto durar a pandemia, para as pessoas não estarem na rua e onde é garantido não só o acompanhamento psicossocial mas também a alimentação e tudo o que são as necessidades básicas dessas pessoas (alimentação, banho, roupa, cuidados de saúde), com as devidas orientações da DGS, para evitar a todo o custo situações de contágio entre pessoas em situação de sem-abrigo”, explica Paulo Santos. Esta é uma estratégia municipal de intervenção integrada, que pretende reforçar as respostas de apoio social e combater a pobreza e a exclusão social desta população, capitalizando a vasta rede de apoio social existente.

 

"Em termos de resposta municipal, aquilo que é nosso grande objetivo é garantir que estão no terreno as respostas suficientes e as mais diversificadas possíveis para que, quando a pessoa sentir capaz ou sentir que é o seu momento de ir ao encontro dessa resposta, nós estamos lá para ela."
Paulo Santos, coordenador PMPSSA

“Há uma série de anos, no Bairro Alto, conheci um jovem que tenho acompanhado ao longo dos anos. Ele não só saiu da rua, como fez a equivalência ao 12º ano, formou-se na área do design, na universidade, e fez-se como pessoa. Saiu da rua para um enquadramento completamente diferente e eu acho que quando isto acontece é muito motivador”.
Alfredo Martins, Comunidade Vida e Paz

Agradecimentos:

Paulo Santos - coordenador da equipa de projeto do Plano Municipal para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2019-2023 (EPPMPSSA)

Comunidade Vida e Paz

CRESCER – Associação de Intervenção Comunitária (cedência de imagens vídeo)