Coração que lá vai coração que lá fica

Junho / 2023

No bairro da Bica “há um amor que não se explica” e que dá “garra à voz” das suas gentes.
Foi esta garra que fez da Bica vencedora das Marchas Populares de Lisboa de 2023.

A marchar desde 1952, o último título de campeã tinha sido conseguido em 2003 e, 20 anos depois, num ano com particulares dificuldades para a Marcha da Bica, sagraram-se de novo vencedores.

Coordenador da marcha desde 2010, Pedro Duarte garante que juntar o grupo “é fácil”, pois o momento de preparar a marcha é quando “os filhos regressam a casa, regressam à Bica”. No entanto, este ano, o Marítimo Lisboa Clube, onde a marcha reúne, ficou sem sede e ficaram sem lugar, não só para ensaiar como para preparar todo o figurino. “Não tínhamos condições para fazer a marcha, não tínhamos sede, não tínhamos espaço para fazer os arcos. Não tínhamos nada”, conta Américo Silva, ensaiador da Marcha da Bica há 34 anos. Mas os marchantes da Bica sonharam, a obra nasceu e saiu mesmo à rua. Entre pastas de arquivo e livros da Junta de Freguesia da Misericórdia, os marchantes puseram mãos à obra.

Foi a fazer das fraquezas força, e da tristeza amor, que a Bica escolheu o tema e cantou “Um cantinho para a gente” escrita por Tiago Torres da Silva, também padrinho da marcha.Pedi aos marchantes todos para escreverem um textozinho sobre o que era para eles irem na marcha, o que era para eles isto que estava a acontecer”. A primeira parte da letra foi construída com os testemunhos dos marchantes e com isso “trazer esse amor que eles têm” para a música e “fazê-los sentir que fazem parte até da construção da letra”, explica o letrista.

Através da música, a Marcha da Bica quis fazer um alerta para a pressão imobiliária e o impacto que tem nas coletividades e moradores dos bairros de Lisboa. Pedro Duarte lembra a “necessidade das pessoas regressarem aos bairros lisboetas”, porque “a nossa cultura, a nossa história e a nossa tradição dependem disso.”

“Quando queríamos estar um bocadinho a conviver, quando tínhamos necessidade de trabalhar, não tínhamos a nossa sede”, recordou Pedro Duarte, e por isso esta vitória, com sabor a sacrifício, sabe também “a muito amor”.

“Transformámos esse problema que tínhamos na força da marcha”, acredita Marco Mercier, co-ensaiador e coreógrafo.
Este foi o primeiro ano que trabalhou com a Bica e ali encontrou um grupo com “muito carinho pela marcha e que enfrentou as dificuldades” o que os fez “juntar ainda mais”.
Para Marco Mercier esta vitória representa “a garra da Bica, a vontade de vencer”.

“Bica é casa”

Dizem que na Bica “coração que lá vai, coração que lá fica”. Prova disso é Tiago Torres da Silva que, não sendo do bairro, afirma que “Bica é casa”. Há 20 anos, desceu a Avenida da Liberdade pela primeira vez como padrinho da marcha, um papel que desempenha até hoje. Feliz pelos seus marchantes, pela “dedicação de vários meses ao bairro”, para Tiago, que já venceu o prémio de melhor letra por diversas vezes, o “verdadeiro prémio é descer a Avenida”. Um “encontro de bairros” que considera “incrível”.

Pedro Duarte descreve a Bica como “um bairro muito pequeno, que transforma a sua pequenez territorial em grandeza de amor, paixão e na forma de receber”. Talvez por esta razão, muitos dos marchantes já não vivem no bairro, mas fazem questão, de todos os anos, prepararem e participarem no grande desfile da noite de Santo António.

É o caso de Tânia e Diana Fernandes. Mãe e filha, a morar do outro lado do rio, desfilaram juntas pela Bica. Tânia Fernandes explica que esta é uma tradição de família. “A minha mãe foi mascote ainda no tempo do Fernando Farinha”, continuou como marchante, um legado que passou para o irmão, “passou para mim e agora para a Diana, que também já foi mascote e esteve na marcha infantil”. A Bica é mesmo “uma família”, afirma.

Quando, há 20 anos, a Bica foi campeã, Tânia Fernandes estava grávida “e não pude marchar”. Este ano, “à hora que a Diana nasceu, às 6h30 em ponto, foi quando 20 anos depois também foram conhecidos os resultados e a Bica é campeã”, recorda. Há quatro anos a marchar pela Bica, esta foi a primeira vez que Diana Fernandes viu a sua marcha ser campeã: “quando alguém grita daquelas escadinhas «ganhámos», ninguém quis acreditar”. É “inesquecível”, afirma.

“A marcha é um ADN e nós não podemos fugir a ele.”

Em 1989, Américo Silva marchava pela primeira vez pela Bica, longe de sonhar que o futuro lhe reservava um dia vir a assumir o papel de ensaiador. Foi em 1990: “mandaram-me a mim para a frente. Eu vim e cá fiquei”, conta. Sob o seu comando, a Bica já venceu por três vezes: 1992, 2003 e 2023. Mas apressa-se a distribuir louros por todos os marchantes e todos os que estão na retaguarda, “sem eles não é possível fazer a marcha”. Apesar de todos os obstáculos que vão enfrentando, acredita que “enquanto eu tiver um grupo de marchantes assim, a Bica nunca morrerá”. Para o veterano da Marcha da Bica “a marcha é um ADN e nós não podemos fugir-lhe”.

Em 2023, a Bica venceu as Marchas Populares de Lisboa pela nona vez. Este ano conquistou os prémios de melhor coreografia, melhor letra e melhor desfile.